Por Alessandro Haiduke
Vivendo e não aprendendo
Eis o homem, esse sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro
(Trecho de uma música que não parava de ressoar em nossos ouvidos)
Vivemos em uma época repleta de comodidades, em nosso planeta quase todos os lugares já foram explorados, as principais linhas das grandes paredes já foram ascendidas. Diante disso, a palavra aventura perdeu grande parte de seu significado, e quando pensamos nela as imagens que nos vem à cabeça são de lugares distantes, como os elevados cumes do Himalaia, as agulhas graníticas da Patagônia… Porém, se refletirmos um pouco mais profundamente sobre o significado da aventura, podemos perceber que, não muito distantes de nossas casas, também podemos viver grandes aventuras, como percebeu o alpinista francês Patrick Berhault ao empreender uma grande travessia pelos Alpes, escalando as mais significativas rotas e montanhas. Esse alpinista procurou resgatar o espírito de aventura, em um mundo onde cada vez mais os escaladores buscam locais em que o acesso às paredes exija o mínimo de esforço. Com isso, estamos deixando de lado uma questão essencial de nosso esporte que, como afirmou Gaston Rebuffat, não compreende somente a escalada em si, mas o reconhecimento, a aproximação, a escalada, o retorno.
Desde pequeno sempre tive uma grande paixão pela aventura, e quando já adulto, encontrando as idéias de Berhault, Rebuffat, Messner (citando alguns de muitos), percebi que eu mesmo estava deixando um pouco de lado algumas coisas importantes, e que deveria resgatá-las.
Aproveitei um período de tempo livre e chamei meu colega de escalada Jonatt para organizarmos uma viagem. Como tínhamos pouco tempo deveríamos escolher um local próximo e ver o que poderíamos acrescentar (ou excluir) para tornar essa viagem uma “pequena grande aventura”.
Decidimos fazer o percurso de bicicleta, aumentando assim a nossa liberdade e comprometimento. O local escolhido foi o segundo planalto parananense, primeiro parando no Buraco do Padre e depois no cânion do Ferradura. Optamos também por não levar a barraca, bivacando todas as noites sob um teto de arenito e estrelas. Para ganhar um pouco de tempo decidimos pegar o ônibus saindo de Curitiba com sentido a Ponta Grossa, levando as bicicletas desmontadas.
Descemos do ônibus e percebemos como é ótimo deixar o ambiente confinado do veículo, montar as bicicletas e começar verdadeiramente a viagem. O percurso até o Buraco do Padre foi relativamente tranqüilo, a estrada estava pouco movimentada e no final da tarde instalamos-nos embaixo dos grandes tetos para o bivaque.
No dia seguinte, bem cedo começamos a provar as vias: La Concha, Frieira Petzl, Sopita de Camaron, Burlando a Lei, Caçador de Sonhos.
A primeira parte do setor é bem negativa, cheia de buracos por toda a parede. Seria perfeita se não fosse o grande número de pedras que se soltam nas mãos, deixando o segue esperto e descaracterizando algumas vias.
O setor de trás já é outra estória, paredes muito negativas e em geral bem sólidas, lembrando muito algumas falésias de escalada que vemos nas fotos européias, um local que merece ser conhecido. Neste setor existem muitas vias, já iniciando forte com o sétimo grau e chegando ao décimo. Entre essas vias, algumas merecem ser citadas, quer pela sua beleza estética, quer pela beleza de seus movimentos: Sopita de Camaron, Burlando a Lei, Invasão Alheia.
No Buraco do Padre escalamos três dias seguidos, de manhã à tarde, até a exaustão dos braços.
Dia seguinte arrumamos os alforjes nas bicicletas e continuamos bem cedo a viagem, esperando chegar no mesmo dia ao Ferradura. Seguimos por uma estrada de terra, sempre próximos ao segundo planalto e em um povoado chamado Sete Lagoas, em direção a serra. Pedir informações aos moradores é sempre uma roleta russa, às vezes acertam, outras erram, e o interessante é que para quanto mais pessoas você pergunta, mais confuso fica. Às 17h30 ainda subíamos e descíamos morros, cheios de blocos de granito, uma paisagem que em nada lembrava o cânion do Ferradura ou suas imediações. Estava anoitecendo, estávamos exaustos (não conseguíamos nem mais empurrar as bicicletas) e não havia nenhum bom lugar para dormir. Sem um local razoável, restava se conformar com qualquer coisa que aparecesse, então pulamos uma cerca e nos acomodamos o melhor possível. Fui em busca de um pouco de água e encontrei uma lona para nos proteger do sereno. Às 22h00 começou a chover levemente. Aos poucos, foi aumentando, molhando quase tudo. Passei a noite inteira sentado ou de joelhos, qualquer tentativa de esticar o corpo significava me molhar. O Jonatt consegue se arrumar um pouco melhor que eu com um saco de ração nos pés para se proteger da chuva. A chuva dura a noite inteira, inclusive com ventos fortes que ameaçam levar nossa lona voando. Poucas vezes esperei tão avidamente que amanhecesse o dia. As primeiras luzes aparecem, porém a chuva não dá nenhuma trégua. Decidimos seguir o lema “antes molhados que parados” e arrumamos rapidamente as coisas para seguir viagem.
Cansados da tortura e sem sinais de melhora no tempo, resolvemos abortar o resto da viagem e seguir direto para Curitiba. Quando chegamos ao alto da serra, onde se iniciam os campos, como por um milagre abrem-se algumas janelas de céu azul. Ao alcançar a BR, o tempo continua melhorando. Aproveitamos um posto de pedágio para comer alguma coisa e descansar. Na entrada para o cânion do Ferradura, a vontade de escalar fala mais alto e entramos no pequeno acesso de terra, ainda receosos com o tempo. À tarde, já estávamos no Cânion, arrumando as coisas sem pressa para o bivaque. Apesar de não estar mais chovendo, as paredes estavam inteiramente molhadas, resultado da água escorrendo acima dos campos.
No outro dia levantamos cedo e as paredes continuavam molhadas, o tempo estava fechado. Decidimos caminhar para o outro lado do Cânion e fazer um reconhecimento das outras paredes.
Entre acertos e erros (muito mais erros) nas trilhas, chegamos aos pés das paredes, procurando as vias que existem nesse lugar. Caminhando um pouco em um corredor, encontramos uma corda que acessa a parte superior do Cânion e, bem ao lado, uma fissura perfeita de dedos, escondida entre cipós e espinhos. Com um pouco de esforço chegamos embaixo da fenda e ficamos angustiados por não trazer nenhum tipo de material de conquista, como também equipamento móvel. Então o Jonatt tem a idéia de conquistar a via utilizando como material de proteção nas fendas nós de cordelete e fitas, como os alemães e tchecos fazem no vale de Elba. Uma coisa que não sabíamos e tivemos que aprender da pior maneira é a dificuldade de se entalar esse tipo de proteção nas fendas: depois de colocadas elas parecem muito sólidas, porém com alguns puxões as capas dos cordeletes se rompem e as proteções sacam. Outra coisa importante é o tipo de nó utilizado, ele é essencial para que a proteção fique razoável (se é que essa palavra pode ser utilizada).
Passamos o dia inteiro nessa pequena parede, o Jonatt um pouco nervoso por depositar sua segurança nessas proteções duvidosas, e eu sofrendo com o sol. Depois de muita luta, meu parceiro chegou ao topo e eu subi limpando a via com uma parada ancorada em um bloco de pedra. A via foi batizada com o nome que resumiu a nossa viagem e essa escalada: Vivendo e Não Aprendendo.
Depois de mais alguns contratempos na trilha (alguns não, vários…), retornamos exaustos ao bivaque.
Na manhã seguinte, tentamos escalar algumas vias cansados (9º graus), mas os braços já não respondiam mais à nossa vontade.
Arrumamos toda a tralha e pedalamos pela BR até Curitiba, chegando à noite.
Terminada a viagem, percebemos que realmente a aventura não se resume somente aos cumes distantes, mas pode ser encontrada em locais próximos. Nós não escalamos uma grande via em livre no Yosemite, não alcançamos os cumes perigosos da Patagônia, mas mesmo assim muitas vezes estivemos próximos dos limites físicos e mentais.
A aventura não é um lugar e sim uma atitude, uma maneira de encarar o desafio, pois como dizia Rebuffat “é a incerteza do resultado final o que atrai em uma aventura”. Então vamos celebrar a incerteza…
“O percurso extremo começa em nossa mente.” (Reinhold Messner)
Jonatt de Paula na conquista da via “Vivendo e não aprendendo”
Belo texto!! Bela encrenca tb!! Abraço!
Parabéns, ler o texto foi ter vivido novamente a aventura. Não importam se foram poucos dias viajando ou poucos minutos agora lendo, pois é nestes momentos que percebo que viver é melhor que apenas existir.
Que massa hein piazada!!! Trip maneira e viva a incerteza que dá brilho à vida!!!
…Lute diante das coisas mais difíceis
de tua vida com amor e sabedoria,
para que um dia possas olhar para
trás e dizer…
FOI DIFÍCIL, MAS VENCI!